terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Trecho de "Cem anos de Solidão" - Gabriel García Márquez

A história de Remedios, a bela


“(...)
Remedios, a bela, foi a única que permaneceu imune à peste da companhia bananeira. Estacou numa adolescência magnífica, cada vez mais impermeável aos formalismos, mais indiferente à malícia e à desconfiança, feliz num mundo próprio de realidades simples. Não entendia por que as mulheres complicavam a vida com camisetas e anáguas, de modo que coseu uma bata de aniagem que enfiava simplesmente pela cabeça e resolvia sem mais trâmites o problema de se vestir, sem desmanchar a impressão de estar nua, que no seu modo de entender as coisas era a única maneira decente de se estar em casa. Amolaram-na tanto para que cortasse o cabelo cascateante que já batia na barriga da perna e para que fizesse um coque preso com pentes e tranças com laços coloridos que simplesmente raspou a cabeça e fez perucas para os santos. O assombroso do seu instinto simplificador era que quanto mais se desembaraçava da moda procurando a comodidade e quanto mais passava por cima dos convencionalismos em obediência à espontaneidade, mais perturbadora ficava a sua beleza inacreditável e mais provocante o seu comportamento para com os homens. Quando os filhos do Coronel Aureliano Buendía estiveram pela primeira ez em Macondo, Úrsula se lembrou de que levavam nas veias o mesmo sangue da bisneta e estremeceu com o horror esquecido. “Abra bem os olhos”, fez tão pouco-caso da advertência que se vestiu de homem e se espojou na areia para subir no pau-de-sebo e esteve a ponto de ocasionar uma tragédia entre os dezessete primos transtornados pelo insuportável espetáculo. Era por isso que nenhum deles dormia em casa quando visitavam o povoado, e os quatro que tinham ficado viviam às expensas de Úrsula em quartos alugados. Entretando, Remedios, a bela, teria morrido de rir se tivesse sabido daquela precaução. Até o último instante em que esteve na Terra ignorou que o seu irreparável destino de fêmea perturbadora era uma desgraça cotidiana. Cada vez que aparecia na sala de jantar, contrariando as ordens de Úrsula, causava um pânico de exasperação entre os forasteiros. Era evidente demais que estava interiamente nua sob a bata grosseira e ninguém podia entender que o seu crânio pelado e perfeito não fosse um desafio e que não fosse uma criminosa provocação o descaso com que descobria as coxas para aliviar o calor e o prazer com que chupava os dedos depois de comer com as mãos. O que nenhum membro da família jamais soube foi que os forasteiros não tardaram a perceber que Remedios, a bela, desprendia um hálito perturbador, uma brisa de tormento que continuava perceptível várias horas depois de ela ter passado. Homens experimentados nos transtornos do amor, vividos no mundo inteiro, afirmavam não ter padecido nunca de uma ansiedade semelhante à que produzia o perfume natural de Remedios, a bela. Na varanda das begônias, na sala de visitas, em qualquer lugar da casa, se podia assinalar o lugar exato onde estivera e o tempo transcorrido desde que deixara de estar. Era um rastro definido, inconfundível, que ninguém da casa podia distinguir porque estava incorporado há muito tempo aos cheiros cotidianos, mas que os forasteiros identificavam imediatamente. Por isso eram eles os únicos que entendiam que o jovem comandante da guarda tivesse morrido de amor e que um cavaleiro vindo de outras terras tivesse caído em desespero. Inconsciente da aura inquietante em que se movimentava, do insuportável estado de íntima calamidade que provocava à sua passagem, Remedios, a bela, tratava os homens sem a menor malícia e acabava de transtorná-los com as suas inocentes complacências. Quando Úrsula conseguiu impor a ordem de que comesse com Amaranta na cozinha, para que os forasteiros não a vissem, ela se sentiu mais cômoda, porque afinal de contas ficava a salvo de qualquer disciplina. Realmente, tanto fazia comer em qualquer lugar, e não em horas fixas, mas de acordo com as alternativas do seu apetite. Às vezes se levantava para almoçar às três da madrugada, dormia o dia inteiro, e passava vários meses com os horários trocados, até que algum incidente casual voltava a pô-la em ordem. Quando as coisas andavam melhor, levantava-se às onze da manhã e se trancava durante duas horas completamente nua no banheiro, matando escorpiões enquanto espantav o denso e prolongado sono. Em seguida, jogava água em si mesma tirando-a da caixa com uma cuia. Era um ato tão prolongado, tão meticuloso, tão rico de situações serimoniais, que quem não a conhecesse bem poderia pensar que estava entregue a a uma merecida adoração do seu próprio corpo. Para ela, entretanto, aquele rito solitário carecia de qualquer sensualidade, e era simplesmente uma maneira de matar o tempo enquanto não sentia fome. Um dia, quando começava a se banhar, um forasteiro levantou uma telha do teto e ficou sem respiração diante do tremendo espetáculo de sua nudez. Ela viu os olhos aflitos através das telhas quebradas e não teve nenhuma reação de vergonha, mas sim de preocupação.
-Cuidado – exclamou. – Você vai cair.
-Só quero ver você – murmurou o forasteiro.
-Ah, bem, - ela disse. – Mas tenha cuidado que essas telhas estão podres.

O rosto do forasteiro tinha uma dolorosa expressão de espanto e parecia lutar surdamente contra os seus impulsos primários, para não dissipar a miragem. Remedios, a bela, pensou que ele sofria de medo de que as telhas quebrassem e se banhou mais depressa do que de costume, para que o homem não continuasse em perigo. Enquanto se jogava água, disse a ele que era um problema que o teto estivesse naquele estado, pois ela acreditava que a camada de folhas apodrecidas pela chuva era o que enchia o banheiro de escorpiões. O forasteiro confundiu aquela conversa com uma forma de dissimular a complacência, de modo que quando ela começou a se ensaboar cedeu à tentação de dar um passo adiante.
-Deixe-me ensaboá-la – murmurou
-Agradeço sua boa intenção – disse ela. – mas posso perfeitamente fazê-lo sozinha com as minhas duas mãos.
-Só as costas – suplicou o forasteiro.
-Seria um desperdícios – ela disse. – Nunca se viu ninguém ensaboar as costas.

Depois, enquanto se enxugava, o forasteiro implorou com os olhos cheios de lágrimas que se casasse com ele. Ela lhe respondeu sinceramente que nunca se casaria com um homem tão bobo que perdia quase uma hora, e até ficava sem almoçar, só para ver uma mulher tomar banho. Por fim, quando vestiu a bata, o homem não pôde suportar a comprovação de que realmente não usava nada embaixo, como todo mundo suspeitava, e se sentiu marcado para sempre com o ferro ardente daquele segredo. Então arrancou mais duas telhas para se atirar no interior do banheiro.
-É muito alto! – ela o preveniu assustada. – Você vai se matar!

As telhas apodrecidas se despedaçaram num estrondo de desastre e o homem mal conseguiu lançar um grito de terror e fraturou o crânio e morreu sem agonia no chão de cimento. Os forasteiros que ouviram o barulho na sala de jantar e se apressaram em levar o cadáver perceberam na sua pele o sufocante cheiro de Remedios, a bela. Estava tão entranhado no corpo que as rachaduras do crânio não emanavam sangue e sim um óleo ambarino impregnado daquele perfume secreto, e então compreenderam que o cheiro de Remedios, a bela, continuava torturando os homens além da morte, até a poeira dos ossos. Entretanto, não relacionaram aquele acidente de horror com os outros dois homens que haviam morrido por Remedios, a bela. Faltava ainda uma vítima para que os forasteiros e muitos dos antigos habitantes de Macondo dessem crédito à lenda de que Remedios Buendía não exalava o sopro de amor mas sim um fluxo mortal. A ocasião de comprová-lo se apresentou meses depois, numa tarde em que Remedios, a bela, foi com um grupo de amigas conhecer as novas plantações. Para o povo de Macondo, era uma distração recente percorrer as úmidas e intermináveis avenidas ladeadas de bananeiras, onde o silêncio parecia trazido de outra parte, ainda sem usar, e por isso era tão difícil transmitir a voz. Às vezes não se entendia muito bem o que era dito a meio metro de distância e que entretanto se tornava perfeitamente compreensível no outro extremo da plantação. Para as moças de Macondo aquela brincadeira nova era motivo de risadas e sobressaltos, de sustos e zombarias, e de noite se falava do passeio como de uma experiência de sonho. Era tal o prestígio daquele silêncio que Úrsula não teve coragem de privar Remedios, a bela, da divesão e lhe permitiu ir numa tarde, desde que pusesse um chapéu e uma roupa adequada. Assim que o grupo de amigas entrou na plantação o ar se impregnou de uma fragrância mortal. Os homens que trabalhavam nas valas se sentiram possuídos por uma estranha fascinação, ameaçados por um perigo invisível, e muitos sucumbiram à terrível vontade de chorar. Remedios, a bela, e suas espantadas amigas conseguiram se refugiar numa casa próxima quando estavam já para serem assaltadas por um tropel de machos ferozes. Pouco depois foram resgatadas pelos quatro Aurelianos, cujas cruzes de cinza infundiam um respeito sagrado, como se fossem marcas de casta, selo de invulnerabilidade. Remedios, a bela, não contou a ninguém que um dos homens, aproveitando o tumulto, conseguira agredi-la no ventre com uma mão que mias parecia uma garra de águia aferrada aos bordos de um precipício. Ela enfrentara o agressor numa espécie de deslumbramento instantâneo e vira os olhos desconsolados que ficaram impressos no seu coração como uma brasa de compaixão. Nessa noite, o homem se gabou da sua audácia e se vangloriou da sua sorte na Rua dos Turcos, minutos antes de que o coice de um cavalo lhe arrebentasse o peito e uma multidão de forasteiros o visse agonizar no meio da rua, sufocado em vômitos de sangue.

A suposição de que Remedios, a bela, possuía poderes de morte estava agora sustentada por quatro fatos irresfutáveis. Embora alguns homens levianos de palavra sentissem prazer em dizer que bem valia a pena sacrificar a vida por uma noite de amor com tão perturbadora mulher, a verdade é que nenhum se esforçou por consegui-lo. Talvez, não só para vencê-la como também para afastar os seus perigos, bastasse um sentimento tão primitivo e simples como o amor, mas isso foi a única coisa que não ocorreu a ninguém. Úrsula não voltou a se ocupar dela. Em outra época quando ainda não renunciara ao propósito de salvá-la para o mundo, procurou interessá-la nos assuntos elementares da casa. “Os homens são mais exigentes doq eu você pensa”, dizia-lhe enigmaticamente. “É preciso cozinhar muito, varrer muito, sofrer muito por mesquinharias, além daquilo que você pensa”. No fundo se enganava a si mesma, tentando adestrá-la para a felicidade doméstica, porque estava convencida de que, uma vez satisfeita a paixão, não havia um homem sobre a terra capaz de suportar, nem que fosse por um dia, uma negligência que estava além de qualquer compreensão. O nascimento do último José Arcadio e sua inquebrantável vontade de educá-lo para Papa terminaram por fazê-la desistir das suas ocupações com a bisneta. Abandonou-a à sua sorte, confiando que mais cedo ou mais tarde aconteceria um milagre e que, neste mundo onde havia de tudo haveria também um homem com suficiente serenidade para cuidar dela. Fazia muito tempo que Amaranta tinha renunciado a qualquer tentativa de convertê-la numa mulher útil. Desde as tarde esquecidas do quarto de costura, quando a sobrinha mal se interessava por rodar a manivela da máquina de coser, chegara à conclusão simples de que era boba. “Vamos ter que rifar você”, dizia-lhe perplexa diante da sua impermeabilidade à palavra dos homens. Mais tarde, quando Úrsula se empenhou para que Remedios, a bela, assistisse à missa com a cara coberta por um véu, Amaranta pensou que aquele recurso misterioso acabaria por ser tão provocante que muito em breve haveria um homem intrigado o bastante para procurar com paciência o ponto fraco do seu coração. Mas quando viu a forma insensata com que desprezou um pretendente que, por muitos motivos, era mais apetecível que um príncipe, renunciou a qualquer esperança. Fernanda não fez sequer a tentativa de compreendê-la. Quando viu Remedios,a bela, vestida de rainha no carnaval sangrento, pensou que ela era uma criatura extraordinária. Mas quando a viu comendo com as mãos, incapaz de dar uma resposta que não fosse um prodígio de patetice, a única coisa que lamentou foi que os bobos de nascença tivessem uma vida tão longa. Apesar de o Coronel Aureliano Buendía continua acreditando e repetindo que Remedios, a bela, era na verdade o ser mais lúcido que havia conhecido na vida, e que o demonstrava a cada momento com a sua assombrosa habilidade para zombar de todos, abandonaram-na ao deus-dará. Remedios, a bela, ficou vagando pelo deserto da solidão, sem cruzes nas costas, amadurecendo nos seus sonos sem pesadelos, nos seus banhos intermináveis, nas suas refeições sem horários, nos seus profundos e prolongados silêncios sem lembranças, até uma tarde de março em que Fernanda quis dobrar os seus lençóis de linho no jardim e pediu ajuda às mulheres da casa. Mal haviam começado, quando Amaranta advertiu que Remedios, a bela, chegava a estar transparente de tão intensamente pálida.
-Você está se sentindo mal? – perguntou a ela.
Remedios, a bela, que segurava o lençol pelo outro extremo, teve um sorriso de piedade.
-Pelo contrário – disse – nunca me senti tão bem.

Acabava de dizer isso quando Fernanda sentiu que um delicado vento de luz lhe arrancava os lençóis das mãos e os estendia em toda a sua amplitude. Amarante sentiu um tremor misterioso nas rendas das suas anáguas e tratou de se agarrar no lençol para não caiur, no momento em que Remedios, a bela, comaçava a ascender. Úrsula, já quase cega, foi a única que teve serenidade para identificar a natureza daquele vento irremediável e deixou os lençóis a mercê da luz, olhando para Remedios, a bela, que lhe dizia adeus com a mão, entre o deslumbrante bater de asas dos lençóis que subiam com ela, que abandonavam com ela o ar dos escaravelhos e das dálias e passavam com ela através do ar onde as quatro da tarde terminavam, e se perderam com ela para sempre nos altos ares onde nem os mais altos pássaros da memória a podiam alcançar.
(...)”


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Trecho de "Cem anos de Solidão" - Gabriel García Márquez